terça-feira, 27 de novembro de 2007

EXPURGANDO

Sônia Hess (professora da UFMS)

De tempos em tempos, muitos adultos são sacudidos por um processo que revolve, traz à tona, todas as dúvidas, dores e culpas da vida inteira. Não se sabe bem de onde vem e, às vezes, o começo não dá avisos, mas depois que passa, o que chamo de “expurgo” deixa marcas profundas, mudando o rumo de quem o vivenciou. O filósofo F. Nietzsche descreveu com maestria este processo, e grandes líderes religiosos também deixaram a seus seguidores descrições deste mergulho profundo na consciência, ressaltando a sua importância para a evolução espiritual. Na bíblia, por exemplo, há diversas passagens que narram momentos em que Jesus se afastou dos demais e passou por momentos de intensas lutas internas, quando era visível o seu sofrimento. Buda também se recolheu e encarou seus assombros. Certamente, a grandiosidade destes seres fez com que eles percebessem a realidade em um nível muito mais amplo do que a maioria das pessoas poderia fazê-lo, o que não permite que avaliemos, em absoluto, a extensão do que lhes rendeu estas experiências.
Ao redor do mundo e no Brasil, são muitos os artigos, livros, músicas, poesias e obras de arte que descrevem este mergulho na consciência de forma clara e intensamente bela. Quem não percebe isto ao contemplar os quadros Guernica, do espanhol Pablo Picasso, ou Abaporu, da brasileiríssima Tarsila do Amaral? Ou a escultura La Pietá, de Michelangelo, e os trabalhos de Rodin? Ou ao ouvir músicas de Villa Lobos, Tom Jobim, Chico Buarque, Gilberto Gil, Almir Sater, Cássia Eller, Cazuza, Renato Russo, Zeca Baleiro, e de tantos outros artistas brasileiros, bem como de Bach, Beethoven, Mozart e Vivaldi?
Artistas e filósofos expõem, de forma sutil, as mensagens do inconsciente de toda a humanidade e, mais particularmente, da sociedade onde vivem. Por isso, há obras que nunca deveriam ser traduzidas para idiomas diferentes daqueles em que foram originalmente produzidas, porque jamais poderiam ser fiéis. Por exemplo, como traduzir Guimarães Rosa ou Ariano Suassuna, sem aviltar a brasilidade de suas obras?
Atualmente, é muito evidente que o “expurgo” também acontece na natureza. Não há ação sem reação e, quanto mais intensa é a ação, muito maior é a reação. Por exemplo, a poluição atmosférica causada pelos seres humanos está resultando, também, na intensificação das emissões de gases do efeito estufa provenientes de processos naturais. Quantidades grandiosas de gás metano, até então acumuladas no fundo dos mares e em áreas congeladas, estão sendo liberadas para a atmosfera, devido ao aumento da temperatura, ao derretimento do gelo, e à intensificação das tempestades, que têm resultado na agitação de regiões profundas dos oceanos, onde este gás permaneceu aprisionado por milhares de anos. Como têm alertado os mais conceituados cientistas, depois que o seu equilíbrio é afetado, o sistema natural responde de forma ampliada e imprevisível.
Na esfera humana, ao avaliar-se a trajetória histórica dos povos, percebe-se que o “expurgo” também ocorre a nível coletivo. Quando uma coletividade percebe, com clareza, seus conflitos, a resposta raramente é suave. Todas as guerras e revoluções sangrentas foram precedidas por este processo, e suas conclusões serviram de justificativa para os conflitos que o sucederam. Em geral, os eventos que precedem a tais conflitos se arrastam por anos, mas trazem mensagens claras de qual será o seu desfecho. O conhecimento disto deveria servir para que a sociedade brasileira atual levasse muito a sério alguns sinais, como os ataques do PCC em São Paulo; a guerra urbana em curso em diversas metrópoles; a falência dos sistemas públicos, mais notavelmente os de educação e de assistência à saúde; além dos conflitos agrários. Não se pode negar que a dor dos brasileiros pobres e a opressão advinda da corrupção são raízes de muitos destes sinais, sendo feridas que precisamos diagnosticar e curar. Novamente, a arte pode nos ajudar muito nesta trajetória em busca da auto-compreensão, como os filmes Querô, Tropa de Elite, Cidade de Deus, além de trabalhos que têm sido produzidos por diversos estudiosos.
Neste momento tão intenso da história, é importante que nós, brasileiros, foquemos a nossa atenção nas mensagens embutidas no hino e na bandeira nacional, bem como nas leis e obras produzidas por artistas e cientistas. Há muita beleza e verdade nestes símbolos e produtos da alma brasileira, que precisam ser traduzidos, trazidos do inconsciente para o consciente, para que sirvam de alicerces na construção de uma nova realidade. Não podemos continuar a pensar e a agir como se fôssemos vítimas de situações trágicas que, efetivamente, ajudamos a construir diariamente. Temos que compreender que nossos atos e omissões resultam na violência urbana e do trânsito; na explosão demográfica; nas falhas do poder público; no sofrimento dos animais; na destruição das matas nativas; na poluição dos rios e dos mananciais de água potável; no envenenamento do ar, dos alimentos e das águas de abastecimento por agroquímicos e produtos industriais tóxicos; e em tantos outros problemas que resultam na dor, doenças e conflitos que nos afligem individual e coletivamente.
Se despertar a tempo, o povo brasileiro poderá servir de grande fonte de alegria e sabedoria para o resto do mundo, porque temos, em nosso território e na intimidade da alma nacional, uma grandiosidade que é única no planeta.

Nenhum comentário: